Quando nasceu, em 1972, Kátia Regina Pereira, hoje com 52 anos, não pôde ser abraçada e muito menos amamentada pela mãe, Maria de Fátima de Lima Silva, hoje com 84 anos, conhecida como dona Nena. Hanseniana, Maria de Fátima foi separada da filha ainda no hospital em Manaus. Viu a filha a uma determinada distância nos braços de enfermeiras. A bebê foi entregue para uma família adotiva.
Em 2013, Kátia Regina reencontrou a mãe, com quem vive atualmente. Um exame de DNA comprovou o laço familiar, e a filha também obteve o direito, em 2023, de receber uma pensão vitalícia no valor de um salário mínimo. É que em 2007 o governo federal reconheceu a violação de direitos cometida aos pais hansenianos e concedeu a pensão vitalícia a eles.
O direito foi garantido pela Lei 11.520/2007 a genitores internados em hospitais-colônias até 31 de dezembro de 1986 e o teste é uma exigência legal.
A história de Nena e dos filhos é um registro da violação pelo Estado a direitos civis. Ela nasceu em Tefé (a 523 quilômetros de Manaus) e veio para Manaus com 15 anos, quando os pais contraíram hanseníase. Diagnosticada com a doença, Nena foi levada para um hospital-colônia, o antigo Antônio Aleixo, no atual bairro Colônia Antônio Aleixo, zona leste de Manaus.
Lá, trabalhou como auxiliar de enfermagem e ajudou a cuidar de outros pacientes em situação pior que a dela. “Lá, os menos ruins cuidavam dos mais ruins”, recorda Nena. Na enfermaria conheceu o comerciante José Brito, que também era hanseniano e estava isolado. Casaram no civil e tiveram 8 filhos.
“As enfermeiras traziam a criança e diziam para a mãe biológica se era homem ou mulher. Você não podia tocar a criança. Também perguntavam que nome você queria dar à criança e depois levavam o bebê para alguma família criar com outro nome com o qual era registrado”, diz dona Nena. Consciente da situação, segurava as emoções.
Nema foi vítima da Lei Federal 610, de 13 de janeiro de 1949, que estabelecia normas e medidas de prevenção à hanseníase. Até 1986 a lei foi cumprida como uma política pública de saúde que promovia o isolamento compulsório e a separação de filhos das pessoas acometidas pela hanseníase.
Kátia Regina foi a quarta filha do casal Nena e José. Ela foi entregue para o casal Antônio e Jandira e o foi registrada com sobrenome dos pais adotivos. “Aqui (na Colônia Antônio Aleixo) havia uma maternidade que se chamava Maternidade Isabel Nogueira, e eu nasci aqui e logo me entregaram para uma família”, diz.
Regina conta que a família adotiva era de baixa renda e ao completar cinco anos de idade teve que vender tapetes na rua com a avó materna adotiva. A avó e a neta despertaram o interesse de uma diarista, chamada “Madalena”, que morava em frente à casa da família. “Eu acho que as pessoas ficaram sensibilizadas ao ver uma criança e uma velhinha vendendo tapetes pelas ruas”, diz Regina.
Madalena viu semelhança de Regina com outra criança que conhecia e decidiu fazer um encontro entre as duas. “Eu acho que ela (Madalena) percebeu que eu era maltratada pela minha madrasta e decidiu me ajudar”, conta Regina. A semelhança gerou uma surpresa.
“Na outra família estava a minha irmã Adriana, e a família adotiva dela frequentava a colônia para visitar os nossos pais biológicos. Então, comentaram com o meu pai biológico que as duas crianças podiam ser irmãs”, diz Regina.
Segundo Kátia Regina, o pai conseguiu sair do isolamento e, orientado por Madalena e a família adotiva de Adriana, localizou Regina. “Eu já não morava com os meus pais adotivos. Eu passei a morar com a vozinha em outra casa. E meu pai biológico nos encontrou, viu a nossa situação e decidiu me entregar para a família que tinha adotado a minha irmã Adriana”, lembra Regina.
“Meu primeiro trauma foi a minha separação com a vozinha Nazaré, porque, quando eu fui morar com a família da minha irmã Adriana, a vozinha foi comigo. Eu estava acostumada a dormir junto com ela. Na primeira noite ela estava ao meu lado, quando amanheceu ela tinha ido embora”, diz Regina.
“Eu chorei durante várias semanas e comecei a ser tratada como empregada doméstica. Levantava cedo para fazer atividades domésticas, como comprar o pão para o café, lavar, limpar…”, conta.
Também era castigada quando fazia xixi na rede durante a noite. “Com nove anos, eu ainda tinha problemas, e quando eu fazia xixi na rede, na casa da nova família, me davam uma espécie de castigo. Aquilo me doía muito”, recorda Kátia Regina.
O estudo liberta
Kátia Regina conta que começou a estudar aos sete anos de idade, sem ter feito a alfabetização. Aos 12 estava no ensino fundamental. “Sem amor, cuidado, regalias, eu morava com a minha irmã Adriana. Mas a nossa relação com os nossos pais adotivos era diferente. Diante dessas situações eu me fiz forte e continuei estudando até chegar à universidade”, diz.
Quando completou os 18 anos e ainda estudando, Regina conta que decidiu se casar. “Eu já era de maior e decidi me casar para ir embora e começar uma nova vida. Era a oportunidade para que eu ficasse livre”, diz.
Aos 37 anos Regina se formou em Serviço Social. Na infância, evitou dizer que era filha de pais hansenianos porque tinha medo de ser rejeitada e discriminada pelos colegas de escola.
“Eu não me identificava com os meus pais biológicos. Na minha cabeça ainda tinha aquelas memórias de pessoas com esparadrapos nas mãos e nos pés”, diz. Para Regina, o único amor que ela tinha como referência era da avó adotiva.
O amor dos pais verdadeiros
Quando completou 45 anos o pai biológico de Regina, José Brito, curado da hanseníase, decidiu reencontrá-la para uma conversa de “pai para filha”. “O meu pai me chama e pede que eu venha morar com ele e a minha mãe Nena. Então, em 2011, eu me interesso por ler o dossiê sobre os filhos separados de pais com hanseníase e começo a ter mais consciência dos problemas e da situação”, diz.
Pai e filha se aproximam. “Meu pai me contou tudo o que tinha acontecido e nos perdoamos. Foi algo divino. Ele me chamou para vir morar com eles e cuidar da administração do mercadinho (estabelecimento da família)”, conta.
Reconhecimento
O dossiê registra o drama de filhos separados dos pais pela hanseníase. A reintegração familiar é promovida pelo Morham (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase).
Kátia Regina e a mãe estiveram em Brasília, em 2023, para participar da solenidade de sanção da Lei 14.736/2023 que modificou o valor da pensão especial concedida às pessoas com hanseníase submetidas compulsoriamente a isolamento ou a internação e concedeu o benefício aos seus filhos.
Kátia e a mãe recuperaram a cidadania. O paradeiro dos demais irmãos é desconhecido.
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