Pecuaristas da Amazônia estão mudando estratégias na produção de gado em resposta às mudanças climáticas.
Criadores antecipam a venda dos animais para confinamento ou abate por não conseguirem engordar rebanhos nas pastagens escassas pelas secas severas. A oferta e a qualidade da produção podem ser afetadas, diz estudo.
O rebanho bovino brasileiro atingiu recorde histórico de 224,6 milhões de animais em 2021, espalhados em mais de 2,5 milhões de estabelecimentos agropecuários. Cerca de 40% do rebanho está na Amazônia Legal, segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Sustentar o gado nos pastos da Amazônia sempre foi um desafio durante a estação seca. Os animais engordam na estação chuvosa e perdem peso drasticamente na estação seca, trazendo prejuízos aos pecuaristas.
Esse “efeito sanfona” produz oscilações na oferta e torna a carne menos macia, diz a autora do estudo, Marin Skidmore, da Universidade Illinois (EUA).
O efeito ficou mais dramático -e custoso- aos produtores à medida que as secas aumentam na região, expondo os animais à fome, sede e calor.
Skidmore analisou quase quatro milhões de transações comerciais de gado operadas em 172 mil fazendas de Rondônia e comparou com variações climáticas de dez anos. Dados são do Guia de Transporte Animal e satélites do Climate Hazards Center (EUA). Ela também entrevistou dezenas de pecuaristas da região.
Skidmore constatou que os pecuaristas estão terceirizando a engorda dos animais nas secas, vendendo-os para propriedades capazes de confinar ou manter o gado em pastagens recuperadas. Quando as temperaturas elevam-se muito, eles vendem direto para o abate.
Esse cenário levou a uma maior dependência de poucas fazendas equipadas para resistir às secas e uma maior especialização das fazendas em cuidar de distintas fases dos bovinos (parto, criação e engorda final).
Os pecuaristas antevêem a severidade das secas observando irregularidades das chuvas da transição entre a estação chuvosa e seca, o que corresponde às observações científicas, segundo o estudo.
Eduardo Assad, climatologista da FGV-SP (Fundação Getulio Vargas), avalia que os pecuaristas apenas “adiam o problema”, pois os modelos climáticos apontam aumento das secas na região. Os impactos econômicos podem ser “irreversíveis” a longo prazo, se não houver mudanças, adverte.
Por serem atividades muito rentáveis a curto prazo, parte dos grandes agropecuaristas não se preocupa com os possíveis danos e perdas climáticas no futuro. “Alguma hora, eles vão perder muito dinheiro”, avalia Assad. Outra saída adotada tem sido expandir a área de produção para compensar as perdas, diz Carlos Nobre, climatologista da Universidade de São Paulo (USP).
Skidmore mostrou ainda que a oferta de gado tornou-se mais instável, decaindo após dois anos da seca extrema, embora aumentasse inicialmente com aumento das vendas para o abate.
No início da seca severa de 2016, provocada pelo El Niño, pecuaristas de Rondônia venderam 1.5 milhão de animais para engorda em contraste com 1 milhão vendidos no ano anterior. Cerca de 20% foram vendidos a mais para abate. O evento impactou a oferta de bovinos em Rondônia até 2019, diz Skidmore.
Ela diz que “se o Brasil continuar passando por secas extremas, poderemos ter efeitos no preço mundial da carne”.
O país é o maior exportador mundial de bovinos (25% entre os principais comerciantes) e possui o segundo maior rebanho do mundo (16% do mercado), segundo o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos.
Cerca de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro vem da agropecuária e as secas trazem prejuízos palpáveis a atividades de ponta do setor.
A safra de soja de 2021/2022 amargurou prejuízos de cerca de R$ 90 bilhões em apenas três estados, segundo a Embrapa Soja (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).
Os confinamentos de gado ganharam relevância nesse cenário, aumentaram 442% no país entre 1990 e 2017. Cerca de 10% do rebanho vive confinado e deve crescer 5% em 2022.
Na Amazônia, a prática expande-se rapidamente devido à escassez de terras e maior demanda de carne no país. Embora mais produtivos e associados a menor desmatamento, poluem mais e proporcionam menor bem-estar animal, segundo pesquisa da USP.
O boitel (“hotel” para bovinos) é outra alternativa de confinamento em ascensão, em que o produtor aluga o serviço de engorda dos animais antes de vendê-los aos frigoríficos.
Climatologistas ouvidos pela Folha de S.Paulo afirmam que grandes alterações climáticas estão em curso na Amazônia nas últimas décadas. Especialmente na porção sul, área com mais de dois milhões de km², que vai do Atlântico à Amazônia boliviana.
Carlos Nobre diz que a estação seca aumentou em até cinco semanas nessa região desde 1979. Temperaturas estão mais elevadas (2 a 3ºC maior) e chuvas reduziram em até 30% na estação seca. “É uma situação muito preocupante”, diz.
São fenômenos causados por mudanças climáticas globais combinadas ao desmatamento, que hoje atinge mais 40% do sul da Amazônia, onde se concentra a pecuária no bioma.
O El Niño está mais agressivo desde a década de 1970 pelas mudanças climáticas e provocará mais eventos climáticos extremos, segundo projeções científicas.
O desmatamento altera drasticamente o ciclo da água na Amazônia. Durante a estação seca, a floresta garante as chuvas ao acessar as águas acumuladas na estação chuvosa, com suas raízes profundas, devolvendo umidade à atmosfera.
“Essa característica desaparece quando se tem grandes áreas de pastagens”, pois as gramíneas têm raízes menores que um metro, diz Carlos Nobre.
O desmatamento provoca os veranicos no sul da Amazônia (dias de seca dentro da estação chuvosa), mostrou pesquisa, e reduz a produtividade da soja, segundo pesquisa mineira.
“Isso [ocorrência dos veranicos] é um desastre para a produção agrícola do país”, alerta Eduardo Assad.
Philip Fearnside, cientista do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), complementa que “o grande trunfo do Brasil é conseguir duas safras de soja ao ano, e isso está ameaçado com aumento das secas”. As secas também tornam a floresta vulnerável aos incêndios e leva “algumas árvores morrerem de sede dentro da floresta”, lamenta.
A pecuária é hoje o principal vetor do desmatamento na Amazônia, substituindo cerca de 76% das áreas desmatadas, seguida pelas culturas agrícolas (13%), diz Carlos Nobre.
Skidmore mostrou em outra pesquisa que fazendas com maior área desmatada produzem menos gado e os vendem mais cedo na cadeia produtiva.
Amplamente extensiva (baseada em pastagens) e historicamente pouco produtiva, a pecuária amazônica desenvolve-se em pastagens degradadas, característica de 40% dos pastos amazônicos, segundo levantamento.
Pastagens recuperadas incrementam a produtividade da pecuária e “blindam a Amazônia” do desmatamento, diz Assad. “O pasto deve ser cuidado como uma lavoura”, com adubagem, irrigação etc., recomenda.
As altas temperaturas castigam o gado amazônico, pressionando criadores a vendê-los para o abate em vez de arriscar a engorda no confinamento ou pasto. Isso resultou numa diminuição da idade média dos animais abatidos em Rondônia, que pode estar afetando a qualidade da carne, segundo Skidmore.
O calor provoca intenso mal estar nos animais, que passam a comer menos, reduzindo a produtividade. As perdas de animais chegam a 5%, segundo estudo.
O sombreamento artificial, plantio de árvores, sistemas de resfriamento, raças resistentes ao calor são algumas alternativas ao estresse térmico, porém ausentes em boa parte da região.
O veterinário Vinícius Cruz, da Emater-Rondônia (Entidade Autárquica de Assistência Técnica e Extensão Rural), acredita que o maior limitador para enfrentar as secas na região é a falta de tecnologia incorporada à produção. Ele assessora 60 pecuaristas. Explica que os diferentes graus de confinamento do gado exigem compra e estocagem de alimentos (milho e soja) e insumos importados hoje encarecidos pela crise energética mundial.
Cerca de 85% dos fertilizantes são importados no Brasil. Eduardo Assad diz que os custos da produção agropecuária já se elevaram este ano e que “veremos as consequências disso na inflação do ano que vem”.
A pecuarista Kassia Jane Freire de Almeida, de Ouro Preto do Oeste (RO), diz haver maior consciência ambiental por parte dos pequenos pecuaristas. Medidas como o plantio de árvores próximas às nascentes buscam reverter parte dos danos à floresta.
No entanto, avalia que a maioria dos recursos para enfrentar a seca são “economicamente inacessíveis ao pequeno produtor”, como a irrigação de pastagens.
Kassia lamenta que é comum ver o gado enfraquecido pela fome, sede e calor buscar refrescar-se em rios e represas, correndo risco de atolar e morrer.
Por Marcelo Lima Loreto da Folhapress
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