BRASÍLIA – Um cruzamento de dados feito pela Folha de S.Paulo revela que mais de R$ 1 bilhão em multas do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), aplicadas em 2020, permanecem sem encaminhamento a setores de conciliação, uma etapa a mais criada pelo governo Jair Bolsonaro (PL) para enfraquecer a fiscalização ambiental.
A reportagem identificou 647 autos de infração com multas superiores a R$ 200 mil cada e sem encaminhamento à conciliação ambiental nos dois anos seguintes. Essas multas somam R$ 1.017.526.000.
A lista tem 28 madeireiras autuadas por exploração ilegal de madeira na Amazônia, centenas de desmatadores do bioma amazônico, duas siderúrgicas, uma ferrovia e uma estatal – Furnas, subsidiária da Eletrobras – que podem ser beneficiadas pela prescrição das multas.
Entre as autuações sem conciliação, a maior multa individual aplicada é de R$ 46,3 milhões, referente à exploração de área embargada na Amazônia. Procurados, o Ibama e o MMA (Ministério do Meio Ambiente) não responderam.
O recorte utilizado foi 2020 porque o Ibama, em um documento de 26 de novembro de 2021, apontou risco de prescrição de mais de 5.000 autos de infração lavrados naquele ano, o segundo do mandato de Bolsonaro. Isso representa quase metade das multas aplicadas em 2020. A informação sobre o risco de prescrição foi revelada pela Folha de S.Paulo no último dia 13.
Bolsonaro e seu então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, editaram um decreto em abril de 2019 em que instituíram a conciliação ambiental. Salles deixou o cargo em junho de 2021, em meio à investigação da PF sobre sua participação em suposto esquema de facilitação de contrabando de madeira da Amazônia.
As multas aplicadas pelos fiscais devem ser encaminhadas para audiências de conciliação, e os processos podem ser encerrados a partir de soluções como descontos para pagamento, parcelamento ou conversão da multa em algum serviço ambiental.
Após a lavratura do auto de infração, a conciliação passou a ser uma primeira etapa de fato no andamento do processo, segundo integrantes do Ibama. Multas inferiores a R$ 500 mil são tratadas nas superintendências nos estados. Os autos de R$ 500 mil ou mais são encaminhados à sede em Brasília. Enquanto essas audiências não ocorrem, há um acúmulo de processos.
Fontes do Ibama ouvidas pela reportagem sob a condição de anonimato afirmam que o risco de prescrição recai especialmente sobre processos que ainda não passaram pela conciliação. Existe um represamento de autos de infração, com risco real de prescrição, que se dá quando a punição deixa de ser possível em razão da perda de prazos processuais.
O risco foi admitido em um documento oficial do próprio Ibama, assinado pelo superintendente de Apuração de Infrações Ambientais, Rodrigo Gonçalves Sabença. Para buscar os processos que ainda não passaram por conciliação, a reportagem usou dois sistemas públicos do Ibama.
Um é a base de dados de autos de infração, que registra 11 mil processos em 2020. O outro é o SEI (Sistema Eletrônico de Informações), onde ocorrem a inserção de documentos e a atualização do andamento processual, a exemplo de outros órgãos do governo federal.
O cruzamento foi necessário porque a base de dados original tem um status desatualizado dos débitos. O número apontado pela reportagem não equivale ao total de processos represados e sem conciliação, uma vez que não há disponibilidade dos números de todos os autos, nem mesmo é possível fazer uma consulta desses processos.
Ao todo, segundo o sistema do Ibama, houve 8.333 autos de infração em 2020, que totalizam R$ 2.147.917.726,42 em multas. O Pará, onde estão os maiores índices de desmatamento da Amazônia, concentra a maior quantidade de autos represados: 294 com valores superiores a R$ 200 mil. Entre os casos encontrados, há cinco multas individuais superiores a R$ 10 milhões. Uma única pessoa foi autuada por desmatar quase 2 mil hectares da Amazônia. Treze madeireiras com exploração ilegal de toras permanecem impunes.
Na sequência aparece Mato Grosso, com R$ 164,1 milhões em multas. Entre os autuados, estão sete madeireiras.
Rondônia fica na terceira posição, com R$ 155,2 milhões. Um único empresário, Guilherme Galvane Batista, foi multado em R$ 46,3 milhões. Ele foi acusado de explorar área embargada na Amazônia. A reportagem não localizou o empresário.
O quarto estado onde há mais infrações represadas é o Amazonas, com R$ 108,4 milhões. Os casos individuais de devastação chegam a 1.400 hectares.
A multa do Ibama a Furnas foi de R$ 2 milhões. A estatal foi enquadrada num artigo da lei ambiental que pune construção com potencial poluidor sem licença ou em desacordo com a licença. Procurada, Furnas não respondeu aos questionamentos.
Em Minas Gerais, dois casos se destacam entre os que aparecem sem encaminhamento à conciliação ambiental. Um envolve a Ferrovia Centro-Atlântica, multada em R$ 2,5 milhões pelo Ibama. A empresa não respondeu aos questionamentos. O outro caso é de uma pessoa suspeita de transportar 1.459 jabutis silvestres. A multa foi de R$ 14,7 milhões.
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